Cheias
A TRAGÉDIA DAS CHEIAS DO NATAL DE 1909
Cheias no Natal de 1909
NA FOZ (in O Primeiro de Janeiro,, 24 de Dezembro de 1909)
Não há palavras que descrevam o espectáculo verdadeiramente horroroso que se presenceia, desde a Cantareira a mais de metade da Avenida de Carreiros, olhando-se para o mar. Se impressiona vivamente a vaga alterosa dessa massa immensa de agua, contrista e condoe toda a gente a onda revolta que arroja a cada momento á praia destroços de embarcações que se tem como que esboroado de encontro aos penedos, que o próprio mar tem esfacellado na revolução das suas aguas, e as pipas, fardos e caixas de mercadorias que o rio leva na sua corrente e que, entrando a barra, são arremessados à praia pelas ondas, tudo isso, a mais das vezes, desfeito de encontro à penedia.
Confrange ver de quando em quando uma ou outra laita que vai desarvorada á mercê da corrente impetuosa do douro e que ou encosta ao cães e logo é socorrida e amarrada com uma dedicação muito para louvar, ou encolha nos areaes e fica ali suspensa, por minutos ou por horas, aguardando os desígnios da sorte, ou no peor dos casos inclina em direcção á barra e se envolve nas ondas e desapparece submergindo-se, como pavor geral da multidão que se agglomera pelos cães e se dsitribue pelas janellas dos prédios como que extática ante tamanha desgraça.
Não há olhos que não se detenham com infinita piedade a contemplas ao longe, na enseada do logar de Sampaio, o vapor Cintra, que tem a bordo 17 pessoas, constantemente em perigo e de continuo a reclamar socorros que não podem prestar os mais audazes nem os mais práticos e temerososos lobos do mar.
São estas impressões que recolhem todos os qe ali vão, desde o obreiro humilde á personalidade aristocrática, porque pessoas de todas as classes e categorias fizeram hontem desde as primeiras horas da manhã, por todo o dia e ainda pela noite adiante, uma verdadeira romaria para contemplação dum espectáculo único, como jamais se tem presenceado entre nós. Assim, os carros eléctricos pela linha da Boavista partiam perfeitamente repletos, e uma quasi constante fila de trens de praça e particulares e automóveis tomava o rumo da Foz, estendendo-se ali pelos diversos passeios e avenidas.
Alem do espectáculo horrível que se presenceava com o coração oppresso por uma grande dor, outro espectáculo se deparava a toda a gente e esse era o curioso movimento de marítimos á beira-mar, numa faina esgotante de prestar os soccorros que podiam, ou lançando amarras ás embarcações que iam bater no caes da Cantareira ou recolhendo os salvados que eram arrojados.
E foi assim que passou todo o dia e noite de hontem, afora os pormenores que em seguida vamos referir.
A Estefania, esse navio da nossa armada que tão gloriosas tradições tinha na marinha de guerra portugueza e que estava servindo de escola de marinheiros no nosso porto, foi barra fora na noite de ante-hontem, como dissemos. Ficou assente sobre as pedras do Ourigo, logo adiante do Castello da Foz, e todos tinham a vaga esperança de o salvar, talvez pela cegueira de amor que lhe consagravam. O mar, porém, impiedoso, n’uma volta medonha, pleas 5 horas da madrugada. Galgou pelos portalós e amuradas e n’um arranco fantástico levou-a impulsivamente até perto da praia, onde se esfacelou com uma rapidez de relâmpago, num estado pavoroso. As vagas trouxeram até ao areal muitos dos destroços, estendendo-os pelas praias até Carreiros, enquanto o dorso do navio com o armamento, material de bordo, enfim, tudo o que havia adentro da embarcação se submergiu, deixando apenas ver na maré vasa uma leve sombra das duas amuradas, desenhada pela revolução das aguas.
Muitos marinheiros choravam ante a contemplação da perda daquele bello e glorioso navio e a officialidade mesma ficou deveras sucumbida. A multidão que prenceou este tristíssimo accidente, e que durante o dia foi até ao local do nafragio, sentiu uma bem dolorosa impressão.
Cheias no Natal de 1909
NA FOZ (in O Primeiro de Janeiro,, 24 de Dezembro de 1909)
Não há palavras que descrevam o espectáculo verdadeiramente horroroso que se presenceia, desde a Cantareira a mais de metade da Avenida de Carreiros, olhando-se para o mar. Se impressiona vivamente a vaga alterosa dessa massa immensa de agua, contrista e condoe toda a gente a onda revolta que arroja a cada momento á praia destroços de embarcações que se tem como que esboroado de encontro aos penedos, que o próprio mar tem esfacellado na revolução das suas aguas, e as pipas, fardos e caixas de mercadorias que o rio leva na sua corrente e que, entrando a barra, são arremessados à praia pelas ondas, tudo isso, a mais das vezes, desfeito de encontro à penedia.
Confrange ver de quando em quando uma ou outra laita que vai desarvorada á mercê da corrente impetuosa do douro e que ou encosta ao cães e logo é socorrida e amarrada com uma dedicação muito para louvar, ou encolha nos areaes e fica ali suspensa, por minutos ou por horas, aguardando os desígnios da sorte, ou no peor dos casos inclina em direcção á barra e se envolve nas ondas e desapparece submergindo-se, como pavor geral da multidão que se agglomera pelos cães e se dsitribue pelas janellas dos prédios como que extática ante tamanha desgraça.
Não há olhos que não se detenham com infinita piedade a contemplas ao longe, na enseada do logar de Sampaio, o vapor Cintra, que tem a bordo 17 pessoas, constantemente em perigo e de continuo a reclamar socorros que não podem prestar os mais audazes nem os mais práticos e temerososos lobos do mar.
São estas impressões que recolhem todos os qe ali vão, desde o obreiro humilde á personalidade aristocrática, porque pessoas de todas as classes e categorias fizeram hontem desde as primeiras horas da manhã, por todo o dia e ainda pela noite adiante, uma verdadeira romaria para contemplação dum espectáculo único, como jamais se tem presenceado entre nós. Assim, os carros eléctricos pela linha da Boavista partiam perfeitamente repletos, e uma quasi constante fila de trens de praça e particulares e automóveis tomava o rumo da Foz, estendendo-se ali pelos diversos passeios e avenidas.
Alem do espectáculo horrível que se presenceava com o coração oppresso por uma grande dor, outro espectáculo se deparava a toda a gente e esse era o curioso movimento de marítimos á beira-mar, numa faina esgotante de prestar os soccorros que podiam, ou lançando amarras ás embarcações que iam bater no caes da Cantareira ou recolhendo os salvados que eram arrojados.
E foi assim que passou todo o dia e noite de hontem, afora os pormenores que em seguida vamos referir.
A Estefania, esse navio da nossa armada que tão gloriosas tradições tinha na marinha de guerra portugueza e que estava servindo de escola de marinheiros no nosso porto, foi barra fora na noite de ante-hontem, como dissemos. Ficou assente sobre as pedras do Ourigo, logo adiante do Castello da Foz, e todos tinham a vaga esperança de o salvar, talvez pela cegueira de amor que lhe consagravam. O mar, porém, impiedoso, n’uma volta medonha, pleas 5 horas da madrugada. Galgou pelos portalós e amuradas e n’um arranco fantástico levou-a impulsivamente até perto da praia, onde se esfacelou com uma rapidez de relâmpago, num estado pavoroso. As vagas trouxeram até ao areal muitos dos destroços, estendendo-os pelas praias até Carreiros, enquanto o dorso do navio com o armamento, material de bordo, enfim, tudo o que havia adentro da embarcação se submergiu, deixando apenas ver na maré vasa uma leve sombra das duas amuradas, desenhada pela revolução das aguas.
Muitos marinheiros choravam ante a contemplação da perda daquele bello e glorioso navio e a officialidade mesma ficou deveras sucumbida. A multidão que prenceou este tristíssimo accidente, e que durante o dia foi até ao local do nafragio, sentiu uma bem dolorosa impressão.
As cheias de 1909 – V
As cheias de 1909 – IV
As cheias de 1909 – III
As cheias de 1909 – II
(via Portuense)
As cheias de 1909 – I
(foto via Das margens do rio)
Em tempo de Natal a tragédia aconteceu. Havia já alguns dias que a chuva caía copiosamente.
Nesse tempo o rio Douro não tinha barragens para lhe moldarem a rudeza do carácter e lhe domesticarem as suas águas bravas.
O Douro apenas obedecia às ordens da sua mãe: a Natureza.
Na Madrugada de 21 de Dezembro detectou-se uma subida do rio, fora do normal. No Cais dos Guindais, no Porto, onde os rabelos descarregavam os produtos agrícolas vindos do Alto-Douro, estava tudo inundado. As balanças e os guindastes para o descarregamento das mercadorias, tinham só a parte superior de fora.
Durante a tarde afundam-se duas barcaças no lado de Gaia, com elas desaparecem os carregamentos que traziam toros de pinheiro e de carvão. Eram horas de expectativa e muita ansiedade. A chuva continuava a cair com intensidade, sem parar. A maré subia e invadia com suas águas os estabelecimentos comerciais e habitações das zonas ribeirinhas do Porto e de Gaia.
Em Gaia mais 11 barcas de carga eram arrastadas pela corrente, acabando por se despedaçarem contra os vapores fundeados no Cais do Cavaco.
Na manhã do dia 22, o mercado ribeirinho da Gaia «fugira» para a Rua Direita. No Porto, a Praça da Ribeira estava meia encoberta de água.
Entretanto, da Régua chegava um telegrama nada animador, que informava que o Douro continuava a crescer. Nesse dia perderam-se mais de 60 barcas de carga, a maior parte foi barra fora. Uma delas, carregada de toros de pinheiro, engatou à passagem nos cabos que seguravam o iate inglês “Ceylon” e levá-lo-ia até à desgraça, não fora a intervenção corajosa de alguns pescadores da Afurada.
Ao fim do dia, no Porto, a Praça da Ribeira, estava submersa. Na noite desse sinistro dia 22 de Dezembro, o céu estava negro, o vento sul soprava demolidor, as águas corriam fortes e barrentas. A medição da velocidade do caudal registava as 11 milhas horárias, entretanto um novo telegrama chegava da Régua, o qual dizia que as águas continuavam a subir, sem parar.
Era a catástrofe.
Às primeiras horas do dia 23, o rio galgava o Muro dos Bacalhoeiros, no Porto. O pânico estava instalado entre os moradores das duas margens do Douro. A força das águas arrastou tudo, a Foz parecia um cemitério de restos de embarcações.
Ao meio-dia, com a preia-mar, o nível do rio estava a cerca de 80 centímetros do tabuleiro inferior da ponte Luís I. È programada a demolição deste com explosivos. Está batido em um metro o recorde das cheias de 1860.
Os episódios trágicos multiplicam-se. No início da tarde, perante os olhares atónitos dos milhares de pessoas que se encontravam nas margens, um pequeno bote faz a sua descida para a morte — no interior apenas um vulto, o de um homem, vindo sabe-se lá donde, de joelhos, as mãos postas a bradar a Deus e aos homens que o salvem. Num repente, defronte da Alfândega, a embarcação vira-se e é engolida, desaparecendo para nunca mais ser vista.
Em Gaia, um comerciante, proprietário de muitas barcas afundadas, enlouquece e dá entrada no Hospital do Conde de Ferreira. As notícias da época falam de suicídios, gente que ficou na miséria e desesperou.
Ao anoitecer do dia 23, a chuva e o vento abrandam.
Na manhã do dia 24 a cheia retrocede. No dia 25 o Sol brilha radioso. Podia-se enfim, dar atenção ao Natal e aos desafortunados moradores ribeirinhos que tinham ficado sem lar.»